07 novembro, 2019

Energia e mente na saúde

Por Leila Massière
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As medicinas do Oriente são também bastante emancipatórias: permitem que o doente deixe de ser paciente e se torne protagonista de seu processo de cura a partir do autoconhecimento. A medicina chinesa, por exemplo, baseia seus diagnósticos em uma compreensão profunda sobre como as emoções afetam cada órgão interno, cada órgão dos sentidos, cada tecido, cada função orgânica.
A tristeza, luto ou pesar (e por que não dizer a carência?) afetam os pulmões, diminuindo consideravelmente a energia do corpo. O peito se fecha, a respiração encurta, o corpo se curva e a imunidade cai. Surge a depressão, um rótulo que, por vezes, em nossa visão ocidental apressada, se cola rapidamente na testa sem que se permita olhar para dentro, inspirando e expirando. A habilidade do pulmão é deixar ir o que já não cabe mais, abrindo espaço para o novo, respeitando os ciclos da vida e a impermanência.
A preocupação, ancorada em desejo e apego, atiça a fome e afeta o estômago, que chega a queimar, ao mesmo tempo em que nos lança para um momento futuro desconectando-nos do presente, o que acaba por desgastar-nos, enfraquecendo a musculatura e o sangue. Daí um cansaço constante, que piora após o almoço e vem acompanhado daquela imensa vontade de comer doce — porque cada órgão também está ligado a um sabor.
O medo é um frio que percorre a espinha. Pode dar aquela dor lombar ou atacar o ciático. É o que acontece quando nos sentimos sem chão e nossas raízes estão ameaçadas. Com o tempo, os ossos também podem ficar fracos. Afeta os rins, e se vier com força, podemos até perder o controle dos esfíncteres — musculatura das estruturas que os chineses chamam de “orifícios inferiores”. Mas também tem um medo mais quente, como o ciúme e as manias de perseguição, que podem esquentar a urina e gerar infecções.
O fígado se arvora com a raiva ou suas nuances, tais como a irritação e a impaciência. A raiva é uma emoção quente, e quanto mais quente e explosiva ela for (ódio e ira), mais ela esquenta nosso corpo e nosso sangue. Surgem coceiras aqui e ali. A raiva sobe, e com ela nossas taxas de pressão. A cabeça fica quente e dói, pulsando, isso se não estourar um vaso sanguíneo. O fígado também está no comando dos olhos, e por isso a irritação deixa os olhos vermelhos. Podemos ficar cegos de raiva, perdendo a amplitude do olhar e enxergando apenas o alvo, no centro, prontos a atacar.
Ela ainda pode se misturar com a tristeza, gerar culpa (raiva de si mesmo) e mágoa (raiva de quem consideramos e não nos retribuiu), afetando fígado e pulmões ao mesmo tempo. Outro aspecto interessante é que o fígado está atrelado aos nossos desejos, ao que nos impulsiona. Ele, juntamente com sua parceira, a vesícula biliar, vão nos dar coragem para tomar atitudes em direção ao que queremos realizar. Mas se nos sentimos incapazes, surge a frustração. A energia fica bloqueada e não circula adequadamente, causando obstruções e dor por todo o corpo (nó na garganta, angina, prisão de ventre, cólica e principalmente, dor e rigidez da musculatura e das articulações), o que também acontece quando não expressamos nossa raiva. Mas a raiva pode cessar sob o efeito da compaixão, a emoção positiva do fígado, que nos torna capazes de enxergar pelos olhos do outro e, assim, compreendê-lo, quem sabe até ajudá-lo.
O coração é diretamente afetado pela euforia, uma alegria artificial e excessiva, obtida por constantes estímulos externos. Seu desequilíbrio manifesta-se na língua e a pessoa dana-se a falar, desembestadaÉ no coração que mora o que os chineses chamam de Espírito Supremo (Shen), mas que a gente pode chamar de EU, para simplificar. Se este EU é forte e autocentrado, bate no peito para dizer orgulhosamente “EU sou isso, EU sou aquilo”. E como é o EU que gosta ou não gosta das coisas, ele aparece no brilho do olho, sempre que nos conectamos com algo externo. O excesso desse brilho gera apego e ansiedade.
A falta dele também é chamada depressão — aqui, menos triste que a do pulmão, tendendo à apatia. Quando me perco do EU, surge baixa assertividade, incoerências e até transtornos psiquiátricos. Mas esse Espírito Supremo também é capaz de manifestar lucidez, deixando de se perceber separado do outro e se conectando com tudo e com todos a nossa volta. Passamos a nos alegrar não apenas com nossa própria alegria, mas com a alegria do outro. Com o tempo, isso nos torna capazes de gerar benefícios a todos os seres que se aproximam. Aí, o brilho do olho fica autônomo. Brota alegria genuína e constante.
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Mas não nos esqueçamos dos poderosos recursos da medicina ocidental e da alegria que é poder contar com seus incríveis avanços quando a porca já torceu o rabo. Nos dias atuais, a lógica da produtividade em saúde mercantiliza o sofrimento e massacra tanto pacientes quanto profissionais. Quanto mais doente está a população, mais a indústria farmacêutica lucra. Mas em sua origem, todos os saberes médicos surgem de uma qualidade inata do ser humano: um imenso desejo de cuidar, de diminuir o sofrimento do outro.
Se adoecemos, sejam as medicinas orientais ou a ocidental que escolhemos como tratamento, o importante mesmo é que precisamos conversar com nossa doença. Buscar entender como ela brota e como estão nossas emoções quando aquele sintoma chega. Mesmo que elas se escondam, sorrateiras, cavuque. Tem hora que não queremos olhar dentro, parece que vai doer ainda mais e achamos melhor deixar doer só no corpo mesmo. Mas vale a pena. Há que se almejar a cura das marcas deixadas por vivências dolorosas que, sem serem descortinadas, seguirão conosco por anos a fio. Tá certo, podemos precisar chorar um bocado, mas vamos compreender, e é só assim que se cura um adoecimento em sua base.
De um jeito ou de outro, vai passar. Se compreendermos que o corpo é mesmo perecível e tanto a decrepitude quanto a morte são mesmo inevitáveis, percebemos que a verdadeira cura transcende o corpo. É a cura dos condicionamentos da mente. É possível estar livre deles. Em verdade, já estamos.

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