17 julho, 2023

Cultivando Autocompaixão

 Dalai Lama, com o pesquisador e autor Thupten Jinpa


O texto a seguir é um trecho do livro “Fearless Heart”, em que Thupten Jinpa apresenta o programa “Treinamento para o cultivo da compaixão” (TCC), que foi desenvolvido na Universidade de Stanford, nos EUA, como uma forma de trazer as meditações de compaixão do budismo tibetano para um público maior, de modo independente do budismo ou de uma tradição espiritual, aliadas à ciência. Essa iniciativa vem de um pedido do Dalai Lama, durante discussões do Mind & Life Institute, que promove o intercâmbio entre meditadores e cientistas. Abaixo, seguem trechos do capítulo sobre auto-compaixão:

O que não é auto-compaixão

… É verdade que somos mais felizes quando estamos menos focados em nosso ego e mais voltados para o mundo, mas a auto-compaixão é totalmente diferente de uma absorção narcisista no próprio ego. Pessoas verdadeiramente auto-compassivas tomam conta de si mesmas enquanto permanecem atentas aos sentimentos e necessidades daqueles ao redor. Na verdade, a saúde mental e física, que vem de sermos mais gentis conosco, nos permite cuidar melhor das outras pessoas. Quando nos fixamos em nosso ego, por outro lado, ficamos tão presos em nosso próprio mundo que não temos espaço para ninguém mais.
Auto-compaixão também não deve ser confundida com auto-piedade. Na auto-piedade, somos capturados por nossos problemas e, ao ter pena de nós mesmos, ficamos indiferentes ao mundo ao redor. Auto-piedade é uma forma de fixação no ego, enquanto auto-compaixão nos permite ver nossas dificuldades no contexto maior da experiência humana compartilhada. Por causa de sua visão mais curta, afunilada, a auto-piedade tende a criar uma explosão com nossa situação de modo que mesmo um problema minúsculo fica parecendo esmagador e insuportável. Em contraste, a auto-compaixão permite uma atenção às proporções, que nos ajuda a lidar com obstáculos e sofrimentos de modo mais construtivo.
Auto-compaixão não é auto-gratificação. A coisa mais compassiva a fazer por nós mesmos pode não ser comer todo o pacote de salgadinhos, ou não confundir desejo com necessidade — não comprando o que não precisamos. A auto-compaixão não é um impulso para presentearmos a nós mesmo, embora às vezes, após reflexão cuidadosa, possamos decidir fazer isso. Igualmente importante: auto-compaixão não é sermos agressivos conosco por comer os salgadinhos, comprar o supérfluo ou nos dar o presente.
Finalmente, auto-compaixão não é o mesmo que auto-estima. Com auto-compaixão, nos conectamos a nós mesmos, especialmente nossas lutas e falhas, com compreensão, gentileza e aceitação. Auto-compaixão é uma orientação gentil, cuidadosa, de visão clara porém sem julgamentos, de nosso coração e mente em relação ao nosso sofrimento e necessidades. A auto-estima, por outro lado, é uma visão de si baseada em auto-avaliação. Enquanto a auto-compaixão pode contribuir para uma melhor auto-estima, ela não depende disso… Certamente, não há nada errado com a auto-estima em si. Mas ela frequentemente é relacionada com quantas realizações obtemos, o que leva as pessoas, incluindo crianças, a acreditarem que só serão estimadas (por elas mesmas e pelos outros) se tiverem “sucesso”. E a auto-estima é distorcida pela nossa cultura de competição, de modo que muitas pessoas entendem seu próprio valor somente em comparação com outras pessoas. … Alguns cientistas também levantam preocupações similares. Pesquisadores descobriram que a auto-estima que depende de realizações nos deixa mais vulneráveis a sentimentos de inadequação e fracasso, quando as coisas dão errado. Alguns estudiosos mostram evidências de que a busca pela auto-estima pode prejudicar o aprendizado, especialmente o aprendizado com os próprios erros. … Ao cultivar auto-compaixão, não nos avaliamos com base em nossos sucessos mundanos, e não nos comparamos com os outros. … Então, a auto-compaixão, diferentemente da auto-estima, permite nos conectarmos melhor com os outros e ter uma disposição mais positiva com eles…

Auto-compaixão e tipos de ligação

Todos temos a capacidade para auto-compaixão, mas não lidamos com isso da mesma maneira. Segundo pesquisadores da área, nossas diferenças vêm dos mecanismos de auto-proteção que adquirimos ao lidar com os desafios e desapontamentos na vida. Estudos sobre o desenvolvimento e personalidade de crianças dizem que a ativação e o desenvolvimento do que os cientistas chamam de sistema de afiliação nos primeiros anos da vida de uma criança são o fator-chave. O sistema de afiliação, ou sistema de carinho (como às vezes é chamado), se refere a sentimentos de segurança, conexão e contentamento, e está ligado à nossa produção natural de opiáceos e hormônios como a oxitocina (às vezes, chamado de “o hormônio do carinho”). Através do cuidado encorajador da mãe (ou pai), idealmente, um bebê acaba reconhecendo seus pais como fontes de segurança e tranquilização. Com essas experiências iniciais, o bebê forma memórias emocionais de segurança, tranquilização e calma. O bebê se sente seguro e não se esquece disso. Nesse cenário feliz, o bebê é agraciado com o que os psicólogos chamam de “ligação segura”. Baseados no trabalho de John Bowlby e Mary Ainsworth, estudiosos contemporâneos definem quatro tipos principais de ligação:
ligação segura
  1. ansiosa e preocupada
  2. de recusa e fuga
  3. temerosa e de fuga
Mas os estilos de ligação não são apenas para bebês; esse conceito se aplica aos primeiros anos e como eles afetam nossa personalidade — especificamente, como nos relacionamos com as pessoas a quem estamos ligados por toda a vida. Ao crescermos, dizem alguns estudiosos, nossa capacidade de nos acalmar se desenvolve a partir dessas experiências iniciais — um processo de recordação emocional, poderíamos dizer. Lá no fundo, se temos um tipo de ligação segura, acreditamos que estamos bem e seguros, ou pelo menos acreditamos nessa possibilidade, porque já vivenciamos isso antes. Idealmente, essas memórias ficam conosco como um cobertor mental de segurança, para momentos de estresse. Então, nosso estilo de ligação afeta nossos hábitos de regulação emocional, que afetam a base de nossa auto-compaixão na vida adulta. Se nossas experiências iniciais forem menos que ideais, como adultos temos que criar aquele conforto e segurança do zero. Não é fácil, mas é bem possível, porque já temos a matéria prima: nossa experiência de sofrimento e nossa capacidade humana natural para a compaixão.
Se não estivermos entre os sortudos com ligação segura, podemos aprender a ter compaixão por nós mesmos exatamente por esse fato! Além disso, nossa personalidade pode ser mais flexível e receptiva a mudanças do que imaginamos.

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